sexta-feira, 18 de setembro de 2009

nosso espetáculo

1. O monstro triplo

Um exemplo de que três corpos podem formar um único corpo, e digo "formar" fazendo de conta de que tudo não é um grande e único corpo. Arranjamos jeitos de enfrentar as limitações que tivemos ao nos tornarmos um. A primeira grande descoberta foi o movimento dos quadris. Rebolamos no sentido horário e no sentido anti-horário, além de fazermos um 8, que foi mais difícil pois não sabíamos o 8 de quem. A segunda descoberta foi que com pulinhos repetidos nos movimentávamos, no sentido de caminhar, facilmente. Só que cansa, e cansamos. Depois, quisemos aterrorizar os automóveis. Nesse trajeto, descobrimos a caminhada lateral que funcionava em ritmo de tango. Passamos a cantar o mais famoso tango aquele para dar o ritmo das passadas. Assim, fomos conduzidos pela faixa de segurança, eu, Angela e Dudu, pela Silvana. E os motoristas pararam, sem buzinar. Atravessamos a rua com o objetivo de escalarmos o Everest, que era um morrinho coberto por gramíneas. Antes de chegar até ele, uma árvore com galhos meio baixos obrigou-nos a dar uma abaixadinha. Primeiro, achamos que não iríamos conseguir subir o Everest, mas nós queríamos, então conseguimos, sem cair. Foi então que vimos, por baixo de algumas árvores da praça, o João Veronete, e a Angela disse que queria ver os veronetes. Outra parte difícil, a descida do morrinho, até porque as gramíneas estavam molhadas da chuva. Com uma ajuda do acomplamento das costas da Silvana, descemos sem maiores problemas, e de novo os motoristas pararam sem protestar. Se fizeram caras feias eu não sei - fizeram, Silvana? A essa altura, já estávamos exaustos de caminhar e o suor corria em nossos rostos, sem contar embaixo das nossas roupas e onde nossos corpos se tocavam, nos pontos de acoplamento. Jornal e corpo humano e movimentos difíceis são três coisas que esquentam pacas. Não víamos a hora de chegarmos na cancha poliesportiva e nos deixarmos cair no Ninho. Foi o que fizemos.

Algumas reflexões. A "natureza" sempre dá um jeito. Como a somos, ela deu / nós demos uma série de jeitos. Um exemplo também da solidariedade dos seres vivos. Da potência de acoplamentos como forma de ampliar possibilidades. Não sei se essa nova campanha da faixa de pedestres vai dar certo, mas é triste saber que os motoristas só não protestaram porque viram que era algo especial, tipo um "trabalho de colégio". Por mais que (um)a arte (contemporânea) não seja compreendida, pelo menos é categorizada como algo a que se costuma, na sociedade, dar-se alguma importância, desde que não se precise pagar por "essa coisa que até meu filho faria". "Podia ser diferente", escreveram no caderno de visitas quando fiz uma exposição de fotos, em 2006, ali no Arcos do Gasômetro. Outra coisa que me vem à mente é que fazemos sacrifícios por coisas que amamos, como esses exercícios artísticos desta semana. O suor, a dor e o barro nos nossos calçados foram encarados com alegria. Em outra ocasião, talvez ficássemos ansiosos por ligar um ar condicionado ou talvez pensássemos duas vezes antes de "pagar um mico". Acho que essa é uma mudança que o eu-quero-que-seja-sempre-assim deve promover, a de não se reprimir com etiquetas e convenções de como se portar. Tem MUITA coisa que dá para fazer (e não fazemos) antes de realmente desrespeitar as outras pessoas. Movimentar-se no mundo sabendo que ele nos movimentos, nadando no ar, que não tem nada de vazio. Não precisamos utilizar somente os movimentos que estão no catálogo da Glorinha Kalil, até porque senão algumas partes do nosso corpo (a.k.a. mente) atrofiam, tensionam.


2. O cego e a caminhada acoplada ao som ininterrupto do OM

Deus, foi a minha vez de me sentir cuidado. Me vendei porque o monstro triplo enxergava, e eu precisava sentir como foi esse aspecto da experiência dos monstros cegos. Da saída do Ninho, então, até o QG, foi um lapso temporal extraordinário. Meditação caminhando & não enxergando & com nossos corpos vibrando em uníssono, às vezes com harmonias vocais em clusters, como a peça Lux aeterna, do compositor húngaro György Ligeti, que foi trilha da cena do monolito negro, em 2001 uma odisseia no espaço, do Kubrick. Cego, facilitava-me o reconhecimento das vozes dos outros co-autores, e sorrisos se formavam quando eu me dava conta, essa é a voz do Rodrigo etc. Improviso teatral, performático & musical &tc. O que não devia ser alguém presenciar ESTA parte de fora?? Vídeos, por favor! Fazendo parte desse novo e maior multi-ser, apareceram relâmpagos de conflito entre estar ali apenas sentindo e existindo e vivendo e o pensamento racional de que os outros, uma maioria esmagadora perto de nós, estava em experiências opostas, correndo atrás (dentro) da máquina, literalmente dentro de máquinas (de aço), com a pressa que nos cria a necessidade de produzirmos pedaços retangulares de papel que nos garantem sobrevivência e/ou conforto. E uma maioria esmagadora dentro dessa maioria esmagadora sequer um dia vai se interessar por esse tipo de experiência, sequer vai chegar a ser levado pelo Acaso até a possibilidade desse tipo de experiência, sequer teve e tem condições de desejar esse tipo de experiência. Isso me perturbou, em alguns lampejos, felizmente rápidos e em níveis baixos de importância dentro da minha percepção geral.

É interessante como temos um desequilíbrio, no mau... sentido, dos nossos sentidos. Ou seja, a supervalorização da visão. De modo que, com a visão restringida, a percepção geral se altera muito. Parece que não estamos registrando o que nos está acontecendo, afinal, as coisas parecem só acontecer de fato conosco se as fotografamos... Esses dias fui à casa de um amigo, e ele e a namorada dele passaram horas mostrando fotos e vídeos de uma viagem turística internacional que fizeram. Fiquei deprimido ao presenciar o tamanho daquele apego. Foi também pela restrição da visão que o Fabrizio conseguiu encontrar o caminho de volta no terraço do Gasômetro, coisa que espantou As Colegiais, que nunca devem ter brincado de cabra-cega. Os outros sentidos, e a intuição, vêm mais à tona. E essa cegueira costuma nos deixar menos temerosos dos nossos superegos, tanto que o ritual aclamado pelas pessoas são as festas noturnas, em bares escuros. A primeira coisa que salta ao cego são os sons. Na cidade, acostumamo-nos a ignorar sons que nos são já extremamente familiares, como os dos passarinhos, os dos carros e os das obras, que, acredito, são os três sons predominantes na cidade em dia ÚTIL. Mas é curioso porque, quando voltamos o foco para a audição completa, isso pode tanto ser motivo de incômodo, afinal, são muitos ruídos, como pode ser motivo de transcendência, de meditação. Inclusive existe música feita com esses sons, como o industrial, a música concreta, a eletroacústica. Existe também música que é ruído puro e constante, o chamado harsh noise. Enfim, quando percebi esses sons, e isso ocorre com cada vez mais frequência para mim, desde que comecei a meditar, percebi-os num grande estéreo, cada um vindo de onde de fato vêm. Por fim, foi marcante saber que eu era a parte frontal do multi-ser quando ELE subiu as escadas, ao que o João disse "O cego nos conduz" (ou "nos orienta"?). Puta merda, que lindo isso, que simbólico. A chegada na sala foi claramente melancólica, pois representava o fim da convivência diária, que, por tão densa, parecia - e foi - infinita. Que venham os projetos-galhos desse grande tronco de árvore, os aleatórios acoplamentos extra-workshop, além da continuidade desse próprio trabalho como feitura de um registro que se tornará uma nova obra, nascida da obra já pronta desta semana, mas independente dela. Escrevi demais.

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