domingo, 22 de setembro de 2013

SOBRE O CONCEITO DA FACE NO FILHO DE DEUS


Meu Avô: João.

“Onde cheira a merda cheira a ser.”  Antonin Artaud

Comovido e aterrado pela obra grandiosa de Romeo Castellucci, cheguei a ser consolado pela senhora ao lado, pois chorava sem parar. Não faz um ano que perdi meu avô e padrinho querido, vitimado por um câncer no cérebro. Quem já viveu processo semelhante sabe da perplexidade e esgotamento que a doença e a morte geram. Conhece o impacto da merda suja e inevitável que vaza das fraldas descartáveis. Conhece o olhar de quem está indo embora. Haja amor, haja paciência...

Mas isso é reminiscência pessoal e Castelucci vai mais além. A ele não interessa quem são os personagens, não existe história anterior ou posterior, apenas um conflito único e exaustivo: um filho vai trabalhar e é impedido por uma sucessão de ataques de diarreia do velho pai que já não consegue cuidar de si. Isso bastaria enquanto drama. Mas o autor insiste nestas ações: cagar, sujar, limpar. Piedade, amor ao próximo, sendo testados pela crueldade da repetição. O conflito permanece e é renovado a cada momento, até atingir um paroxismo trágico e que arrebenta os nervos dos personagens e do público. O cotidiano e comezinho atinge proporções apocalípticas e colossais. Como colossal é a face do Cristo que nos observa, ampliada no cenário, da mesma forma como observamos as ações no palco. Estaremos sendo julgados? Julgando? È a dimensão pública de uma crise íntima?


Sobre o conceito da face no filho de deus, é peça que se alinha com a genealogia da arte maldita e transformadora proposta por Artaud. A impressão é de ver realizado o teatro evocado pelo artista francês, que propunha o espetáculo como espaço para uma revolução não apenas estética, mas do homem e seu corpo. Um projeto de insurreição contra toda forma de controle institucional e normativo, um processo capaz de decompor o corpo para liberá-lo dos automatismos  que condicionam suas ações e o afastam de sua realidade. Liberdade e autoconsciência da ação. Prazer e dor de estar vivo.

Castellucci nos traz uma escatologia teatral em tempos nos quais questões éticas e sensíveis, relacionadas ao espírito e à religião, são substituídas pelo oportunismo violento do lucro e da sujeição humana com base na fé. Escatologia enquanto conjunto de histórias ligadas ao fim do homem e do mundo, presentes em muitas culturas. O escatol é também a substância presente nas fezes, responsável por aquele cheiro que evitamos e que Castellucci joga no ventilador, nos dutos de ar do teatro e nos sufoca. Transformando o teatro numa câmera de gás onde somos confrontados com o que não queremos ver, nem ouvir, nem pensar, nem cheirar. É o peso do tempo, a perda do controle sobre si, a morte, o fim...

Ao final, aquele rosto gigantesco do Salvator Mundi (forma de representação tradicional do Cristo que o mostra geralmente segurando um globo terrestre, aludindo ao apocalipse e o julgamento final) é rasgado, sujado e explodido por uma chuva de granadas lançadas por um exército de crianças, revelando a frase “você (não) é o meu pastor”. Ao dimensionar a tragédia do corpo com erosão das certezas filosóficas e espirituais na atualidade, Romeo Castellucci nos convida a uma desconstrução interior dolorosa e inevitável. Uma oportunidade única de sentir a pancada e a potência que o teatro pode ter. Um elogio aos caminhos abertos por Artaud. Um teatro que, ao ferir, cura. E, ao esmagar, liberta...

Por João de Ricardo

Encenador, performer e professor independente. www.processoshibridos.blogspot.com