“ (...)
Pois penso que é Amor,
Pois sinto que é Amor,
Pois tenho certeza de que nada mais é que amor!
Carrol considerava este o mais belo poema que já escrevera. Mesmo os que concordem com o sentimento que lhe é subjacente, e subjacente a outras partes do romance que são fortemente saturadas de pieguice, têm dificuldade em ler hoje esses trechos sem constranger o autor. Eles parecem ter sido escritos no fundo de poços de melado. Somos lamentavelmente forçados a concluir que, no conjunto, Sílvia e Bruno é um fracasso tanto artístico quanto retórico. Com certeza poucas crianças vitorianas, a quem a história se destinava, sentiram-se em algum momento comovidas, divertidas ou levadas por ela.
Ironicamente, é o nonsense anterior e pagão de Carroll que possui, ao menos para certos leitores contemporâneos, uma mensagem religiosa mais eficaz que Sílvia e Bruno. Pois o nonsense, como Chesterton gostava de nos dizer, é uma maneira de encarar a existência aparentada com a humildade e o assombro religiosos. O Unicórnio pensou que Alice fosse um monstro fabuloso. É parte do embotamento filosófico de nosso dias que existam milhões de monstros racionais a andar por aí sobre as patas traseiras, observando o mundo através de pares de pequenas lentes flexíveis e empurrando periodicamente substâncias orgânicas por orifícios em seus rostos para se abastecer de energia, os quais não vêem absolutamente nada de fabuloso em si mesmos. Ocasionalmente os narizes dessas criaturas são sacudidos por paroxismos momentâneos. Kierkegaard imaginou certa vez um filósofo espirrando ao registrar uma de suas frases profundas. Como poderia tal homem, perguntou-se Kierkegaard, levar sua metafísica a sério?
O último nível metafórico nos livros de Alice é este: que a vida, vista racionalmente e sem ilusão, parece ser uma história disparatada contada por um matemático idiota. No cerne das coisas a ciência só encontra uma louca e infindável quadrilha de Ondas da Tartaruga Falsa e Partículas do Grifo. Por um momento as ondas e as partículas dançam em padrões grotescos, inconcebíveis, capazes de refletir apenas seu próprio absurdo. Todos nós vivemos vidas burlescas sob uma inexplicável sentença de morte, e, quando tentamos descobrir o que as autoridades do Castelo querem que façamos, somos encaminhados de um burocrata para outro. Não temos sequer certeza de que o Conde West-West, o dono do Castelo, realmente existe. Mais de um crítico comentou as semelhanças entre O processo de Kafka e o julgamento do Valete de Copas; entre O castelo de Kafka e um jogo de xadrez em que peças vivas ignoram o plano do jogo e não têm como saber se estão se movendo por vontade própria ou sendo empurradas por dedos invisíveis.
(...)”
Comentário de Martin Gardner sobre a obra de Lewis Carroll no livro “Alice - edição comentada” (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2002 – pág XIII)
Pois penso que é Amor,
Pois sinto que é Amor,
Pois tenho certeza de que nada mais é que amor!
Carrol considerava este o mais belo poema que já escrevera. Mesmo os que concordem com o sentimento que lhe é subjacente, e subjacente a outras partes do romance que são fortemente saturadas de pieguice, têm dificuldade em ler hoje esses trechos sem constranger o autor. Eles parecem ter sido escritos no fundo de poços de melado. Somos lamentavelmente forçados a concluir que, no conjunto, Sílvia e Bruno é um fracasso tanto artístico quanto retórico. Com certeza poucas crianças vitorianas, a quem a história se destinava, sentiram-se em algum momento comovidas, divertidas ou levadas por ela.
Ironicamente, é o nonsense anterior e pagão de Carroll que possui, ao menos para certos leitores contemporâneos, uma mensagem religiosa mais eficaz que Sílvia e Bruno. Pois o nonsense, como Chesterton gostava de nos dizer, é uma maneira de encarar a existência aparentada com a humildade e o assombro religiosos. O Unicórnio pensou que Alice fosse um monstro fabuloso. É parte do embotamento filosófico de nosso dias que existam milhões de monstros racionais a andar por aí sobre as patas traseiras, observando o mundo através de pares de pequenas lentes flexíveis e empurrando periodicamente substâncias orgânicas por orifícios em seus rostos para se abastecer de energia, os quais não vêem absolutamente nada de fabuloso em si mesmos. Ocasionalmente os narizes dessas criaturas são sacudidos por paroxismos momentâneos. Kierkegaard imaginou certa vez um filósofo espirrando ao registrar uma de suas frases profundas. Como poderia tal homem, perguntou-se Kierkegaard, levar sua metafísica a sério?
O último nível metafórico nos livros de Alice é este: que a vida, vista racionalmente e sem ilusão, parece ser uma história disparatada contada por um matemático idiota. No cerne das coisas a ciência só encontra uma louca e infindável quadrilha de Ondas da Tartaruga Falsa e Partículas do Grifo. Por um momento as ondas e as partículas dançam em padrões grotescos, inconcebíveis, capazes de refletir apenas seu próprio absurdo. Todos nós vivemos vidas burlescas sob uma inexplicável sentença de morte, e, quando tentamos descobrir o que as autoridades do Castelo querem que façamos, somos encaminhados de um burocrata para outro. Não temos sequer certeza de que o Conde West-West, o dono do Castelo, realmente existe. Mais de um crítico comentou as semelhanças entre O processo de Kafka e o julgamento do Valete de Copas; entre O castelo de Kafka e um jogo de xadrez em que peças vivas ignoram o plano do jogo e não têm como saber se estão se movendo por vontade própria ou sendo empurradas por dedos invisíveis.
(...)”
Comentário de Martin Gardner sobre a obra de Lewis Carroll no livro “Alice - edição comentada” (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2002 – pág XIII)
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