quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Beuys criar e se criar

REcebi pela Lista Nucleo Aberto de Performance, resolvi compartilhar!

Joseph Beuys: Criar é se criar
Por Christina Fornaciari

Numerosos são os historiadores e críticos de arte que estabelecem um marco histórico em torno do qual desenvolvem seu pensamento. Ao tentar compreender o surgimento da arte moderna, Nicolas Bourriaud, em "Formes de vie", define como divisor de águas a racionalização do trabalho, ainda no Século XIX. Para Bourriaud, a modernidade artística surge ao mesmo tempo em que se instauram as práticas de divisão do trabalho, quando a produção industrial passa a reduzir o esforço humano a uma repetição de gestos imutáveis e cronometrados, condicionando o comportamento do homem (1). Em sua relação com o tempo e com o espaço, o homem se repete – levanta-se todos os dias no mesmo horário, para percorrer o mesmo trajeto em direção ao local de trabalho, onde exercerá os mesmos gestos repetidos em um ritmo pré-determinado, só então reencontrado um pequeno tempo/espaço não normatizado, onde possa simplesmente existir. Dessa forma, o que o fordismo e o taylorismo impõem, em última instância, é a separação entre a produção de bens materiais e a produção de si. Não há, nessa economia da produção industrial, espaço ou tempo para gestos que não contenham em si um fator remuneratório, gestos de individuação. Nesse contexto, a modernidade inaugura uma prática artística que contraria a produção industrial, ao propor a não separação entre os gestos de produção e os gestos de individuação, ao unir trabalho – a obra de arte – à vida do indivíduo – o artista/autor. Então, tanto quanto um quadro ou uma escultura, a modernidade artística valoriza também certos gestos de existência, certos modos de viver, valendo o imperativo principal que poderia se formular assim: faça de sua vida uma obra de arte.

É a partir dessa noção de arte que pretendo abordar alguns aspectos da obra do artista alemão Joseph Beuys. Apesar de sua vasta produção em escultura, aquarela, pintura e desenho, é a produção imaterial beuysiana – ações performáticas, suas aulas e sua biografia – que chama atenção diante do que Bourriaud denominou existência unificada.

Em 1964, no dia da comemoração aos 20 anos do fracasso do golpe de Stauffenberg contra Hitler, Beuys expôs sua autobiografia fictícia. Explicou, entre outras coisas, que a presença de gordura e feltro em quase todos os seus trabalhos, originou-se em seu encontro com uma população tribal da União Soviética, a qual teria salvado sua vida ao enrolá-lo nesses materiais após a queda de seu avião, metralhado durante a Segunda Guerra Mundial. Com este ato Beuys integra seu próprio personagem à sua problemática artística, recriando sua própria existência. Sua biografia, que remonta à cultura européia dos santos, onde esculturas invisíveis são erigida (2), não importa ser tida como verdadeira e nem como falsa, mas como uma lenda, no sentido da palavra em latim – aquilo que deve ser lido e dito, aquilo que é narrado. Recorrente e difusa, variável e não verificável, a lenda tem o status de verdade, ou assume seu lugar. No entanto, a lenda de Joseph Beuys deve ser tomada não como constituinte de uma verdade, mas pelo efeito de verdade que esta agrega a toda a análise de sua obra artística. É imprescindível à compreensão da produção beusyana que se recorra à lenda, da mesma forma como a lenda é constantemente alimentada e reafirmada pela obra.

O próprio Beuys, ao refletir sobre sua produção, afirma que "na verdade, esse choque ao final da guerra é minha primeira experiência, a experiência fundamental, a qual, de fato, foi o que me levou a começar a produzir arte, ou seja, a me orientar em direção a um começo radicalmente novo (3)"(minha tradução). Beuys está constantemente a alimentar sua obra com a lenda, retornando incessantemente ao início do ciclo que o criou como mito. Desta forma, Beuys se re-insere na própria obra, ao contrário do artista que se retira quando o trabalho está pronto. Ao aparecer em público sempre vestido em seu colete de aviador e chapéu de feltro, atributos simbólicos que o relacionam a sua biografia conturbada, Beuys, assim como um xamã, identifica sua existência a uma qualidade mítica que deve ser louvada – não por ser verdadeira, mas porque a própria sociedade admitiu sua proclamação, sem questionar se o que ele descreve foi realmente vivenciado.

Ao esculpir sua própria identidade, Beuys nos apresenta a máxima da arte moderna e seu conceito alargado de arte, onde a fala é pintura, e o pensamento, ação. Ao apresentar-se contra "o silêncio de Marcel Duchamp" (4), Beuys utiliza-se do princípio que ele mesmo denominou de "conferência permanente", no qual afirma o espaço ilimitado de seu campo de ação que pressupõe a presença do artista e seu poder de enunciação de si e de sua arte. Cada declaração sua, cada frase explicativa de sua obra é necessariamente parte da obra. Portanto, ele é responsável por sua fala, assim como um pintor é responsável por sua pintura. Por exemplo, a escultura para Beuys está intrinsecamente ligada à voz do artista, à sua presença, à sua lenda, à sua vida. Sua arte opõe-se a tudo o que é imutável, à medida em que constrói um espaço em constante transformação e perecimento. A sua escolha por trabalhar com materiais como gordura, animais mortos, mel, sangue, feltro, caracteriza essa necessidade de se situar em um processo de transformação. Longe de apresentar esses materiais em si mesmos, como obras de arte acabadas, Beuys utiliza-os como um ponto de partida, um lugar de onde reflexões possam aflorar.

Beuys utilizou a gordura pela primeira vez em uma performance realizada no "Festival of New Art", na Universidade de Aachen, na Alemanha, quando foi diretamente atacado por estudantes de direita. Enquanto ele derretia duas barras de gordura em pratos quentes, ouvia-se como trilha sonora o infame discurso do político alemão Joseph Goebbles, que veementemente convocava toda a população para entrar em estado de "guerra total". O confronto direto causado por essa experiência – Beuys foi agredido fisicamente, tendo o rosto atingido e ensangüentado, segurando um crucifixo contra os agressores – nos dá um quadro do que a obra de Beuys representa para ele mesmo: um desejo de "provocar as energias das pessoas e conduzi-las a uma discussão geral sobre os problemas presentes" , novamente retornando a um conceito alargado de arte, que envolve sua atuação cotidiana perante a sociedade, num contínuo processo de criação de si e de sua arte.

Xamanismo, presença física, construção de uma lenda, construção de si: a dimensão da obra de Beuys vai além da materialidade de sua produção, vai além de sua escultura social, sendo a própria vida do artista um dispositivo crucial, insubstituível. Na concepção beusyana, assim como na modernidade artística apontada por Bourriaud, a arte não está separada da vida, mas essa alarga sua prerrogativa natural, sendo o artista em si um material no qual esculpir, capaz de transformar estados mentais como nenhum outro pode fazer.

Christina Fornaciari é mestra em Performance pela Queen Mary's University of London e graduada em Teatro pelo Teatro Universitário da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais.

Notas:
1 BOURRIAUD, Nicolas. Formes de Vie. Paris, Editións Denoël, 1999.
2 BURCKHARDT, Jacqueline (org.), Una Discussione, Zurique, 1986. p 136.
3 HAL, Foster. Art Since 1990, (Vol. 2). Nova York: Thames and Hudson Inc., 2004. Pág. 481.
4 Beuys se revela contrário ao conceito de "anti-arte"em sua ação "O silêncio de Marcel Duchamp é superestimado", de 11 de novembro de 1964.

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