terça-feira, 14 de dezembro de 2010
terça-feira, 30 de novembro de 2010
domingo, 21 de novembro de 2010
Deleuze na Fórmula 1
"Não é um pensamento discursivo [o de Deleuze e Guattari], mas segundo a própria definição deles, é uma máquina fundamentalmente energética, destinada a vibrar e a fazer vibrar aqueles que dela se aproximam e a engajá-los em um movimento produtivo, que não passa exatamente pelas idéias nem pelas palavras, passa pelos afetos. Por afetar e ser afetado. Passa pela capacidade de vibrar em consonância, passa pela capacidade de despertar o entusiasmo, a vontade de viver, a vontade de criar." (Gregório Baremblitt)
domingo, 22 de agosto de 2010
Definir performance é um falso problema
Atriz, performer, a carioca Eleonora Fabião está em Fortaleza ministrando o módulo Dança e Performance, do curso Dança e Pensamento, promovido pela Vila das Artes, que prossegue até sexta (10). Doutora em Estudos da Performance pela New York University, Fabião fala na entrevista a seguir sobre alguns aspectos que permeiam sua pesquisa: a relação da performance com as artes e como o conceito desestabiliza uma idéia preconcebida entre o performer-ativo e espectador-passivo
O conceito de performance ligado à arte é bem escorregadio e, por outro lado, existe uma visão mais senso comum do termo bem limitadora. O que realmente é performance? Existe um conceito mais fechado do termo?
A performance é uma prática artística que se desenvolve como gênero ao longo da segunda metade do século XX, ou seja, depois da Segunda Guerra Mundial e suas catástrofes correlatas. Digo “se desenvolve como gênero” pois muitos historiadores defendem a idéia de que as origens das práticas performativas são mais remotas. Alguns propõe que a performance tem suas raízes fincadas nos movimentos de vanguarda do início do século (dadaísmo, surrealismo etc.). Outros sugerem que a performance é tão antiga quanto o ritual. É importante enfatizar que a noção de performance como a conhecemos hoje aparece por volta dos anos 1960, quando inúmeras manifestações artísticas - que não podiam ser classificadas como teatro, dança, pintura, escultura ou qualquer outro gênero previamente conhecido - começam a acontecer simultaneamente pelo mundo afora. A performance surge no cenário pós-guerra como uma denúncia, uma resposta e uma proposta. Gosto de colocar a performance em perspectiva histórica e relativizar sua origem ao invés de buscar defini-la ou enquadrá-la teoricamente. A estratégia da performance é resistir a definições. Ela trata justamente de desnortear classificações, de desconstruir modos tradicionais de produção e recepção artística. É um expoente da arte contemporânea porque suspende certezas sobre o que seja “obra de arte”, “espectador” e “artista” ao lançar perguntas desconcertantemente fundamentais como: o que é arte? o que move a arte? o quê a arte move? quê arte move? Enquanto gênero, a performance não fixa formas espaciais ou temporais, não utiliza mídias ou materiais específicos, nem estabelece modos de recepção ou critérios de documentação. Alguns performers trabalham em espaços públicos, outros em galerias ou demais espaços destinados à fruição artística, outros em seus próprios estúdios ou casas, enquanto outros preferem espaços rurais. O mesmo sobre a temporalidade da performance: há peças com duração de um ano enquanto outras duram horas, minutos ou mesmo segundos. Quanto às mídias e materiais utilizados pelos artistas, a diversidade também é grande. Quanto à recepção da performance, também impera a indeterminação: alguns artistas performam para espectadores (que tornam-se cúmplices ou testemunhas de seus feitos), outros com os espectadores (que tornam-se assistentes e até mesmo co-realizadores do evento), e outros sem espectadores (e optam por documentar ou não as ações realizadas). Há também aqueles artistas que criam proposições para serem realizadas não por eles, mas pelos próprios “espectadores”. Ou ainda, numa versão radicalmente diferente, aqueles que contratam e pagam pessoas para performar suas propostas. Trocando em miúdos: tentar definir a performance não é apenas contraditório ou redutor, é mesmo impossível. Definir performance é um falso problema. Porém, claro, há fatores comuns entre peças de performance. Sobretudo a ênfase no corpo como tema e matéria. Me restrinjo a destacar algumas tendências gerais: o desmonte de mecânicas clássicas do espetáculo, a desconstrução da representação, o desinteresse pela ficção, a investigação dos limites entre arte e não-arte, a investigação das capacidades psicofísicas do performer, a criação de dramaturgias pessoais e/ou auto-biográficas, a ênfase nas políticas de identidade e em discussões políticas em geral através do corpo e as experimentações em torno das qualidades de presença do espectador.
Qual a relação entre performance e arte, já que performance, de certa forma, está ligada a manifestações distintas de arte? Até que ponto a arte é devedora de uma concepção de performance, e vice-versa?
A hibridação de gêneros é uma das principais características da performance. Aliás, esta possibilidade de fusão ampla, geral e irrestrita de materiais e procedimentos é uma das principais características não apenas da performance mas da produção artística contemporânea. No estudo da teórica de teatro alemã Erika-Fischer-Lichte, intitulado “O Poder Transformador da Performance” (The Transformative Power of Performance), ela propõe que desde o início dos anos 1960, a arte ocidental experimenta o que chama de “performative turn”. Segundo Fischer-Lichte, esta virada performativa inclui todos os gêneros artísticos -cujas fronteiras tornam-se mais fluidas - além de dar origem a performance art propriamente dita. Nas artes visuais, a action painting, a body art, as instalações e as obras de site specific são exemplos deste caráter performativo. Na música, experimentações em torno de temas como “música cênica”, “música visual”, “teatro instrumental” também são exemplos. No teatro, o interesse crescente pela desconstrução da narrativa e da ficção em favor da inclusão do espectador numa cena cada vez mais porosa é outro traço performativo marcante. De modo geral o “performative turn” aponta para a seguinte tendência: o crescente desinteresse pela noção de obra de arte enquanto resultado final do trabalho do artista a ser absorvido e interpretado pelo espectador e, em contrapartida, a crescente valorização do evento que inclui o espectador como elemento constitutivo.
Sua pesquisa parte do princípio de uma desestabilização na relação performer-espectador, principalmente de uma dicotomia bastante difundida da idéia de um performer ativo e um espectador passivo. De que modo seus trabalhos e pesquisas se propõem a buscar uma colaboração entre esses dois agentes?
Para te responder vou comentar resumidamente uma performance - “Ações Cariocas” - que realizei faz pouco tempo no Largo da Carioca [uma das praças mais movimentadas do Centro do Rio de Janeiro]. Para realizar a primeira “Ação Carioca”, levo para o Largo duas cadeiras da cozinha da minha casa, um bloco formato A2 e uma caneta pilot. Quando chego no local escolhido do Largo, tiro o sapato, coloco uma cadeira diante da outra, escrevo no bloco “converso sobre qualquer assunto”, levanto o cartaz e espero. No primeiro dia não fazia idéia do que iria acontecer. Minha motivação era muito clara: dialogar com meus concidadãos, tentar recuperar meu interesse e amor pela cidade onde cresci e que, por conta da corrupção política e da truculência criminosa, tornou-se uma violenta cultura do medo. Para reagir contra minha prostração e frustração resolvi ir para a rua, conversar com quem quisesse conversar comigo, criar uma performance em que a receptividade fosse a chave dramatúrgica. Fato é que, logo depois de erguer o cartaz, quase imediatamente depois, uma pessoa sentou-se comigo. E assim sucessivamente. Várias pessoas, todo tipo de gente, tantas conversas e assuntos que precisaria de páginas e páginas para descrever. No final de cada dia - permanecia cerca de quatro horas na rua e por vezes mais de uma hora com cada pessoa - estava eufórica, totalmente eletrizada, não exatamente pela ocupação de um espaço, mas pela abertura de uma dimensão, uma dimensão performativa; energizada pelo reencontro com a cidade e com a minha própria cidadania; energizada por podermos criar juntos, através do diálogo, e na medida de nossas micro-percepções e micro-políticas, novas possibilidades para nós, a arte e a cidade.
Falando sobre o conteúdo do módulo ´Dança e Performance´, existe uma aproximação maior entre performance e dança do que em relação a outras manifestações artísticas? Como o conceito de performance se insere no panorama da dança contemporânea?
Existe uma aproximação maior apenas na medida em que a dança sempre valorizou o corpo. O que não quer dizer que a dança tenha sempre valorizado um corpo que pensa ou um pensamento sobre criação de corpo e de mundo. Aqui lembro do teórico da dança André Lepecki, de seu trabalho voltado para o desenvolvimento de uma “dança-que-se-pensa”, uma dança capaz de reconhecer e rearticular as forças sociais, políticas e ideológicas que a condicionam. Desde os anos 1960, dançarinos e coreógrafos interessados em repensar as possibilidades da dança vêm se perguntando o quê os move, e não simplesmente como mover-se. Foi numa entrevista com Pina Bausch [bailarina e coreógrafa recém falecida] que li esta articulação esclarecedora. Muitos dos ensaios desde a criação da companhia em Wuppertal nos anos 1970, desenvolviam-se em torno de perguntas que ela fazia aos dançarinos que, para respondê-las, lançavam mãos de todos os seus recursos expressivos (se necessário inclusive a voz e a palavra). Bausch opta por trabalhar com dançarinos mais velhos, opinativos, corpos marcados, etnias diversas, agentes muito diferentes da etérea bailarina clássica. Corpos que, sob a direção de Bausch, absorveram e transformaram as lições de ballet para criar o híbrido “dança-teatro”, movimento que abriu caminho para as atuais pesquisas da dança contemporânea. Seja de maneira consciente ou não, a dança contemporânea é fortemente inspirada pela performance. A dança contemporânea propõe uma revisão radical da definição tradicional de dança - “mover-se ritmicamente acompanhando uma música e, em geral, seguindo uma seqüência de passos”. Em muita dança contemporânea não se encontrará passos, nem música e, talvez, sequer movimento (se compreendido exclusivamente como deslocamento no espaço). Em contrapartida, a materialidade dos corpos, o desvendamento das convenções cênicas, as éticas relacionais e as políticas de identidade serão temas possivelmente evocados através de pesquisas que podem envolver desde lingüística, novas tecnologias e arquitetura até física, biologia e filosofia. Como a performance sugere, não interessa neste momento definir o que é a dança contemporânea, mas perguntar em cada aqui e a cada agora, o que queremos que dança seja. Cada espetáculo será pois uma resposta momentânea para esta questão recorrente.
FONTE:
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=652907
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
sexta-feira, 13 de agosto de 2010
terça-feira, 10 de agosto de 2010
Re Enacting
clica ali!
blogue que achei, sem querer querendo, como sempre, de uma disciplina de performance, da UNIRIO, lidando com o re enacting
interessante ver .. processos pedagógicos performáticos
quinta-feira, 15 de julho de 2010
Videoperformance: EURO
Euro, Lisboa, 2009.
Videoperformance concebida coletivamente por Inês Salpico (Lisboa), Andrea Matte (Chile) e Estêvão Haeser (Brasil).
Fotografia: Andrea Matte
Captação do áudio: Inês Salpico
Texto: Estêvão Haeser
Agradecimento especial à querida amiga Paula Naia que cedeu o espaço no Palácio Marquês do Pombal (prédio do século XVIII, sede do IADE CHIADO CENTER, em Lisboa).
domingo, 20 de junho de 2010
sexta-feira, 11 de junho de 2010
Cerimônia
"A possibilidade mais marcante do estético é a de produzir uma 'concentração máxima da atenção sobre um dado objeto' (Mukarovský). No contexto dessa argumentação, ele [Mukarovský] introduz um exemplo que se revela imediatamente condizente com a nossa observação: a importância da função estética em todo tipo de cerimônia, o fator estético 'isolante' que é inerente a toda festividade. Ora, é evidente que a prática do teatro sempre possui uma dimensão do cerimonial. O teatro pós-dramático é a substituição da ação dramática pela cerimônia, com a qual a ação dramático-cultual estava intrinsecamente ligada em seus primórdios. Jean Genet considerava o teatro espressamente como cerimônia, e a missa como a forma mais elevada do drama moderno. Para Genet, como constata Monique Borie, é o diálogo com os mortos que confere à obra de arte sua dimensão própria." (Hans-Thies Lehmann)
terça-feira, 18 de maio de 2010
quarta-feira, 12 de maio de 2010
quinta-feira, 29 de abril de 2010
terça-feira, 27 de abril de 2010
terça-feira, 20 de abril de 2010
anatomia da boneca
pessoal dêem uma olhada no blog, tem várias referências de performance...
www.anatomiaboneca.blogspot.com
www.anatomiaboneca.blogspot.com
segunda-feira, 19 de abril de 2010
Performare
Performare:
esse grupo tem um blog com uma comunidade que oferece um bom arquivo de textos sobre processos criativos, performance art, etc
esse grupo tem um blog com uma comunidade que oferece um bom arquivo de textos sobre processos criativos, performance art, etc
Casa - Corpo Lygia Clark
A PROJEÇÃO DO CORPO NO CONTEXTO DA OBRA - UMA REFLEXÃO A PARTIR DA INSTALAÇÃO “A CASA É O CORPO” DE LYGIA CLARK
Dione Veiga Vieira
Estado Crítico - Estado Crítico
Lygia Clark. “A Casa é o Corpo: Labirinto”, 1968. Instalaçãorealizada no MAM-RJ e na Bienal de Veneza, em 1968.
O corpo como enfoque das reflexões da obra – com exceção daquela que usa o próprio corpo como suporte – não é mais percebido unicamente por suas características basilares, e sim como parte da imensa teia de significações que a obra opera. Uma vez que o corpo, concebido no cruzamento de conceitos e processos, passa a ser compreendido – tanto na experiência artística quanto na experiência reflexiva – como algo amalgamado ao contexto da obra. O corpo, nesse nível de percepção e análise, está impregnado de um rumoroso mundo externo a ponto de confundir-se com o mesmo e permanecer na impossibilidade de uma identidade conferida apenas por suas inerentes singularidades. O corpo pertence ao espaço do mundo, com o qual nunca atinge uma estabilidade.
Freqüentemente podemos observar em certas propostas de arte que o corpo físico se faz entrever fragmentado, desconstruído, ou distorcido, e assim, (e apesar disso) facilmente identificável. Porém em outras, o corpo encontra-se tão pulverizado em múltiplas referências – sociais, históricas, políticas, científicas, metafísicas, etc. – que não há qualquer elemento identificador de sua organicidade. Em todas essas abordagens, há sempre uma idéia de prolongamento do corpo – o corpo individual está expandido em seus desdobramentos conceituais e, ao mesmo tempo, na acepção plástica da obra.
Casa e corpo – uma engrenagem simbólica
Há exatamente quarenta anos atrás, Lygia Clark (1920-1988) apresentou, duas vezes, e no mesmo ano, a instalação “A Casa é o Corpo”, obra de fundamental importância para a história da arte brasileira: pela primeira vez, no MAM-RJ e posteriormente, na Bienal de Veneza, quando expôs em sala especial, toda a sua trajetória artística até aquele momento, em 1968.
“A Casa é o Corpo” se constituía de um grande balão plástico situado no centro de uma estrutura formada por dois compartimentos laterais e um labirinto de 8 metros de comprimento – uma obra-ambiente concebida “para ser penetrada pelo visitante como abrigo poético” (MILLIET, Maria Alice. 1992. p.111)
A palavra “abrigo” proclama a função primordial da casa: a de abrigar o corpo. Nesse caso, a casa-obra de Clark é basicamente um espaço que “acolhe” o público para a revivência intra-uterina. A obra-casa é um corpo fecundo – um imenso útero; um espaço-continente. O título da instalação aponta essa determinada compreensão, porém, por si só, evoca outros imprecisos sentidos, os quais, inevitavelmente, repercutirão em inexauríveis leituras.
A Casa é o Corpo – o coletivo e o individual
A instalação “A Casa é o Corpo” funda a noção clarkiana de “corpo coletivo” a qual, através de outras proposições, passa a se desenvolver muito significativamente ao longo dos anos 70, época da ditadura militar no Brasil. Nessa época, dedicando-se às “vivências criativas”, e no objetivo de distanciar-se cada vez mais do objeto, Clark continuava se referindo ao termo “abrigo poético” ao mesmo tempo em que inverteu as palavras do título da instalação e, enunciou: “o corpo é a casa”. O corpo que, a partir daquele momento, passa a ser o meio estruturante das “ações vivenciadas”; das ações coletivas transformadoras, ou transgressoras – porque “o gesto é soberano e insubmisso a qualquer regra” (MILLIET, Maria Alice. 1992. p.117). Evidentemente que essa “poética de corpo” construída na emergência de uma imaginação criadora e crítica, continha nítidas intenções anti-establishment – e não somente em relação ao sistema das artes.
É importante ressaltarmos que nessas ações coletivas, os corpos individuais dos participantes tornavam-se um “todo orgânico” ou, uma “arquitetura viva”, conforme Clark. “Trata-se de um abrigo poético onde habitar é equivalente do comunicar” (Clark in MILLIET, Maria Alice. 1992. p.131). As ações, através dos gestos dos participantes, construíam esse “corpo-casa”, ou mais precisamente, essa obra com qualidade de corpo no sentido atribuído por Merleau Ponty: “Ser corpo, (...), é estar atado a um certo mundo” (PONTY, Merleau. 1999. p.205).
A Casa é o Corpo – na Contemporaneidade
O embate “corpo individual x corpo coletivo” está geralmente referenciado conscientemente pelo próprio artista. Doris Salcedo (1958), por exemplo, artista colombiana, ao usar roupas, móveis e objetos domésticos – em obras realizadas na década de 90 e, até início de 2000 – estava, sobretudo, se referindo às atrocidades políticas cometidas em seu país. O título da obra “La Casa Viuda” (A Casa Viúva, 1992 -1995), se refere à expressão colombiana que aponta o lar em que subitamente um membro da família desapareceu pela violência política.
Para Salcedo, os móveis, alterados com cimento, e por vezes desarticulados ou, empilhados em grandes blocos, plasmam a idéia de brutalidade suportada pelo indivíduo e, por conseguinte pela coletividade. A imagem da “casa”, re-significada na obra de arte, reflete sobre o “corpo individual” dentro do “corpo social”: essa é uma reflexão de corpo em sua totalidade. O espaço da moradia representado tanto pelos aspectos arquiteturais internos e externos, quanto pelo mobiliário e objetos cotidianos, perpassa, além do conceito de “abrigo” ou, de “espaço privado”, a idéia de um “espaço coletivo” primordial. A casa é o ambiente em que se processam os primeiros sentimentos de coletividade; o lugar onde se estruturam modelos de sociedade baseados na organização familiar. Assim, a casa constitui o espaço fundamental das experiências socializantes, e como tal estabelece uma metáfora poderosa do “corpo coletivo” ou, do “corpo social” – uma simbologia que se faz muito presente na arte contemporânea.
Cildo Meirelles (1948) Tunga (1952), Adriana Varejão (1964) e José Bechara (1957) são alguns exemplos de artistas brasileiros – para citar apenas alguns – que, em certos momentos articulam os desdobramentos dessa premissa, cada um a seu modo, em uma escala de múltiplas variações conceituais e formais.
Dione Veiga Vieira
Estado Crítico - Estado Crítico
Lygia Clark. “A Casa é o Corpo: Labirinto”, 1968. Instalaçãorealizada no MAM-RJ e na Bienal de Veneza, em 1968.
O corpo como enfoque das reflexões da obra – com exceção daquela que usa o próprio corpo como suporte – não é mais percebido unicamente por suas características basilares, e sim como parte da imensa teia de significações que a obra opera. Uma vez que o corpo, concebido no cruzamento de conceitos e processos, passa a ser compreendido – tanto na experiência artística quanto na experiência reflexiva – como algo amalgamado ao contexto da obra. O corpo, nesse nível de percepção e análise, está impregnado de um rumoroso mundo externo a ponto de confundir-se com o mesmo e permanecer na impossibilidade de uma identidade conferida apenas por suas inerentes singularidades. O corpo pertence ao espaço do mundo, com o qual nunca atinge uma estabilidade.
Freqüentemente podemos observar em certas propostas de arte que o corpo físico se faz entrever fragmentado, desconstruído, ou distorcido, e assim, (e apesar disso) facilmente identificável. Porém em outras, o corpo encontra-se tão pulverizado em múltiplas referências – sociais, históricas, políticas, científicas, metafísicas, etc. – que não há qualquer elemento identificador de sua organicidade. Em todas essas abordagens, há sempre uma idéia de prolongamento do corpo – o corpo individual está expandido em seus desdobramentos conceituais e, ao mesmo tempo, na acepção plástica da obra.
Casa e corpo – uma engrenagem simbólica
Há exatamente quarenta anos atrás, Lygia Clark (1920-1988) apresentou, duas vezes, e no mesmo ano, a instalação “A Casa é o Corpo”, obra de fundamental importância para a história da arte brasileira: pela primeira vez, no MAM-RJ e posteriormente, na Bienal de Veneza, quando expôs em sala especial, toda a sua trajetória artística até aquele momento, em 1968.
“A Casa é o Corpo” se constituía de um grande balão plástico situado no centro de uma estrutura formada por dois compartimentos laterais e um labirinto de 8 metros de comprimento – uma obra-ambiente concebida “para ser penetrada pelo visitante como abrigo poético” (MILLIET, Maria Alice. 1992. p.111)
A palavra “abrigo” proclama a função primordial da casa: a de abrigar o corpo. Nesse caso, a casa-obra de Clark é basicamente um espaço que “acolhe” o público para a revivência intra-uterina. A obra-casa é um corpo fecundo – um imenso útero; um espaço-continente. O título da instalação aponta essa determinada compreensão, porém, por si só, evoca outros imprecisos sentidos, os quais, inevitavelmente, repercutirão em inexauríveis leituras.
A Casa é o Corpo – o coletivo e o individual
A instalação “A Casa é o Corpo” funda a noção clarkiana de “corpo coletivo” a qual, através de outras proposições, passa a se desenvolver muito significativamente ao longo dos anos 70, época da ditadura militar no Brasil. Nessa época, dedicando-se às “vivências criativas”, e no objetivo de distanciar-se cada vez mais do objeto, Clark continuava se referindo ao termo “abrigo poético” ao mesmo tempo em que inverteu as palavras do título da instalação e, enunciou: “o corpo é a casa”. O corpo que, a partir daquele momento, passa a ser o meio estruturante das “ações vivenciadas”; das ações coletivas transformadoras, ou transgressoras – porque “o gesto é soberano e insubmisso a qualquer regra” (MILLIET, Maria Alice. 1992. p.117). Evidentemente que essa “poética de corpo” construída na emergência de uma imaginação criadora e crítica, continha nítidas intenções anti-establishment – e não somente em relação ao sistema das artes.
É importante ressaltarmos que nessas ações coletivas, os corpos individuais dos participantes tornavam-se um “todo orgânico” ou, uma “arquitetura viva”, conforme Clark. “Trata-se de um abrigo poético onde habitar é equivalente do comunicar” (Clark in MILLIET, Maria Alice. 1992. p.131). As ações, através dos gestos dos participantes, construíam esse “corpo-casa”, ou mais precisamente, essa obra com qualidade de corpo no sentido atribuído por Merleau Ponty: “Ser corpo, (...), é estar atado a um certo mundo” (PONTY, Merleau. 1999. p.205).
A Casa é o Corpo – na Contemporaneidade
O embate “corpo individual x corpo coletivo” está geralmente referenciado conscientemente pelo próprio artista. Doris Salcedo (1958), por exemplo, artista colombiana, ao usar roupas, móveis e objetos domésticos – em obras realizadas na década de 90 e, até início de 2000 – estava, sobretudo, se referindo às atrocidades políticas cometidas em seu país. O título da obra “La Casa Viuda” (A Casa Viúva, 1992 -1995), se refere à expressão colombiana que aponta o lar em que subitamente um membro da família desapareceu pela violência política.
Para Salcedo, os móveis, alterados com cimento, e por vezes desarticulados ou, empilhados em grandes blocos, plasmam a idéia de brutalidade suportada pelo indivíduo e, por conseguinte pela coletividade. A imagem da “casa”, re-significada na obra de arte, reflete sobre o “corpo individual” dentro do “corpo social”: essa é uma reflexão de corpo em sua totalidade. O espaço da moradia representado tanto pelos aspectos arquiteturais internos e externos, quanto pelo mobiliário e objetos cotidianos, perpassa, além do conceito de “abrigo” ou, de “espaço privado”, a idéia de um “espaço coletivo” primordial. A casa é o ambiente em que se processam os primeiros sentimentos de coletividade; o lugar onde se estruturam modelos de sociedade baseados na organização familiar. Assim, a casa constitui o espaço fundamental das experiências socializantes, e como tal estabelece uma metáfora poderosa do “corpo coletivo” ou, do “corpo social” – uma simbologia que se faz muito presente na arte contemporânea.
Cildo Meirelles (1948) Tunga (1952), Adriana Varejão (1964) e José Bechara (1957) são alguns exemplos de artistas brasileiros – para citar apenas alguns – que, em certos momentos articulam os desdobramentos dessa premissa, cada um a seu modo, em uma escala de múltiplas variações conceituais e formais.
quinta-feira, 18 de março de 2010
26 e 27 de março/10 CPTA(centro de pesquisa teatral do ator) na usina às 20:00 no térrio
segunda-feira, 8 de março de 2010
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
quinta-feira, 21 de janeiro de 2010
Beuys criar e se criar
REcebi pela Lista Nucleo Aberto de Performance, resolvi compartilhar!
Joseph Beuys: Criar é se criar
Por Christina Fornaciari
Numerosos são os historiadores e críticos de arte que estabelecem um marco histórico em torno do qual desenvolvem seu pensamento. Ao tentar compreender o surgimento da arte moderna, Nicolas Bourriaud, em "Formes de vie", define como divisor de águas a racionalização do trabalho, ainda no Século XIX. Para Bourriaud, a modernidade artística surge ao mesmo tempo em que se instauram as práticas de divisão do trabalho, quando a produção industrial passa a reduzir o esforço humano a uma repetição de gestos imutáveis e cronometrados, condicionando o comportamento do homem (1). Em sua relação com o tempo e com o espaço, o homem se repete – levanta-se todos os dias no mesmo horário, para percorrer o mesmo trajeto em direção ao local de trabalho, onde exercerá os mesmos gestos repetidos em um ritmo pré-determinado, só então reencontrado um pequeno tempo/espaço não normatizado, onde possa simplesmente existir. Dessa forma, o que o fordismo e o taylorismo impõem, em última instância, é a separação entre a produção de bens materiais e a produção de si. Não há, nessa economia da produção industrial, espaço ou tempo para gestos que não contenham em si um fator remuneratório, gestos de individuação. Nesse contexto, a modernidade inaugura uma prática artística que contraria a produção industrial, ao propor a não separação entre os gestos de produção e os gestos de individuação, ao unir trabalho – a obra de arte – à vida do indivíduo – o artista/autor. Então, tanto quanto um quadro ou uma escultura, a modernidade artística valoriza também certos gestos de existência, certos modos de viver, valendo o imperativo principal que poderia se formular assim: faça de sua vida uma obra de arte.
É a partir dessa noção de arte que pretendo abordar alguns aspectos da obra do artista alemão Joseph Beuys. Apesar de sua vasta produção em escultura, aquarela, pintura e desenho, é a produção imaterial beuysiana – ações performáticas, suas aulas e sua biografia – que chama atenção diante do que Bourriaud denominou existência unificada.
Em 1964, no dia da comemoração aos 20 anos do fracasso do golpe de Stauffenberg contra Hitler, Beuys expôs sua autobiografia fictícia. Explicou, entre outras coisas, que a presença de gordura e feltro em quase todos os seus trabalhos, originou-se em seu encontro com uma população tribal da União Soviética, a qual teria salvado sua vida ao enrolá-lo nesses materiais após a queda de seu avião, metralhado durante a Segunda Guerra Mundial. Com este ato Beuys integra seu próprio personagem à sua problemática artística, recriando sua própria existência. Sua biografia, que remonta à cultura européia dos santos, onde esculturas invisíveis são erigida (2), não importa ser tida como verdadeira e nem como falsa, mas como uma lenda, no sentido da palavra em latim – aquilo que deve ser lido e dito, aquilo que é narrado. Recorrente e difusa, variável e não verificável, a lenda tem o status de verdade, ou assume seu lugar. No entanto, a lenda de Joseph Beuys deve ser tomada não como constituinte de uma verdade, mas pelo efeito de verdade que esta agrega a toda a análise de sua obra artística. É imprescindível à compreensão da produção beusyana que se recorra à lenda, da mesma forma como a lenda é constantemente alimentada e reafirmada pela obra.
O próprio Beuys, ao refletir sobre sua produção, afirma que "na verdade, esse choque ao final da guerra é minha primeira experiência, a experiência fundamental, a qual, de fato, foi o que me levou a começar a produzir arte, ou seja, a me orientar em direção a um começo radicalmente novo (3)"(minha tradução). Beuys está constantemente a alimentar sua obra com a lenda, retornando incessantemente ao início do ciclo que o criou como mito. Desta forma, Beuys se re-insere na própria obra, ao contrário do artista que se retira quando o trabalho está pronto. Ao aparecer em público sempre vestido em seu colete de aviador e chapéu de feltro, atributos simbólicos que o relacionam a sua biografia conturbada, Beuys, assim como um xamã, identifica sua existência a uma qualidade mítica que deve ser louvada – não por ser verdadeira, mas porque a própria sociedade admitiu sua proclamação, sem questionar se o que ele descreve foi realmente vivenciado.
Ao esculpir sua própria identidade, Beuys nos apresenta a máxima da arte moderna e seu conceito alargado de arte, onde a fala é pintura, e o pensamento, ação. Ao apresentar-se contra "o silêncio de Marcel Duchamp" (4), Beuys utiliza-se do princípio que ele mesmo denominou de "conferência permanente", no qual afirma o espaço ilimitado de seu campo de ação que pressupõe a presença do artista e seu poder de enunciação de si e de sua arte. Cada declaração sua, cada frase explicativa de sua obra é necessariamente parte da obra. Portanto, ele é responsável por sua fala, assim como um pintor é responsável por sua pintura. Por exemplo, a escultura para Beuys está intrinsecamente ligada à voz do artista, à sua presença, à sua lenda, à sua vida. Sua arte opõe-se a tudo o que é imutável, à medida em que constrói um espaço em constante transformação e perecimento. A sua escolha por trabalhar com materiais como gordura, animais mortos, mel, sangue, feltro, caracteriza essa necessidade de se situar em um processo de transformação. Longe de apresentar esses materiais em si mesmos, como obras de arte acabadas, Beuys utiliza-os como um ponto de partida, um lugar de onde reflexões possam aflorar.
Beuys utilizou a gordura pela primeira vez em uma performance realizada no "Festival of New Art", na Universidade de Aachen, na Alemanha, quando foi diretamente atacado por estudantes de direita. Enquanto ele derretia duas barras de gordura em pratos quentes, ouvia-se como trilha sonora o infame discurso do político alemão Joseph Goebbles, que veementemente convocava toda a população para entrar em estado de "guerra total". O confronto direto causado por essa experiência – Beuys foi agredido fisicamente, tendo o rosto atingido e ensangüentado, segurando um crucifixo contra os agressores – nos dá um quadro do que a obra de Beuys representa para ele mesmo: um desejo de "provocar as energias das pessoas e conduzi-las a uma discussão geral sobre os problemas presentes" , novamente retornando a um conceito alargado de arte, que envolve sua atuação cotidiana perante a sociedade, num contínuo processo de criação de si e de sua arte.
Xamanismo, presença física, construção de uma lenda, construção de si: a dimensão da obra de Beuys vai além da materialidade de sua produção, vai além de sua escultura social, sendo a própria vida do artista um dispositivo crucial, insubstituível. Na concepção beusyana, assim como na modernidade artística apontada por Bourriaud, a arte não está separada da vida, mas essa alarga sua prerrogativa natural, sendo o artista em si um material no qual esculpir, capaz de transformar estados mentais como nenhum outro pode fazer.
Christina Fornaciari é mestra em Performance pela Queen Mary's University of London e graduada em Teatro pelo Teatro Universitário da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais.
Notas:
1 BOURRIAUD, Nicolas. Formes de Vie. Paris, Editións Denoël, 1999.
2 BURCKHARDT, Jacqueline (org.), Una Discussione, Zurique, 1986. p 136.
3 HAL, Foster. Art Since 1990, (Vol. 2). Nova York: Thames and Hudson Inc., 2004. Pág. 481.
4 Beuys se revela contrário ao conceito de "anti-arte"em sua ação "O silêncio de Marcel Duchamp é superestimado", de 11 de novembro de 1964.
Joseph Beuys: Criar é se criar
Por Christina Fornaciari
Numerosos são os historiadores e críticos de arte que estabelecem um marco histórico em torno do qual desenvolvem seu pensamento. Ao tentar compreender o surgimento da arte moderna, Nicolas Bourriaud, em "Formes de vie", define como divisor de águas a racionalização do trabalho, ainda no Século XIX. Para Bourriaud, a modernidade artística surge ao mesmo tempo em que se instauram as práticas de divisão do trabalho, quando a produção industrial passa a reduzir o esforço humano a uma repetição de gestos imutáveis e cronometrados, condicionando o comportamento do homem (1). Em sua relação com o tempo e com o espaço, o homem se repete – levanta-se todos os dias no mesmo horário, para percorrer o mesmo trajeto em direção ao local de trabalho, onde exercerá os mesmos gestos repetidos em um ritmo pré-determinado, só então reencontrado um pequeno tempo/espaço não normatizado, onde possa simplesmente existir. Dessa forma, o que o fordismo e o taylorismo impõem, em última instância, é a separação entre a produção de bens materiais e a produção de si. Não há, nessa economia da produção industrial, espaço ou tempo para gestos que não contenham em si um fator remuneratório, gestos de individuação. Nesse contexto, a modernidade inaugura uma prática artística que contraria a produção industrial, ao propor a não separação entre os gestos de produção e os gestos de individuação, ao unir trabalho – a obra de arte – à vida do indivíduo – o artista/autor. Então, tanto quanto um quadro ou uma escultura, a modernidade artística valoriza também certos gestos de existência, certos modos de viver, valendo o imperativo principal que poderia se formular assim: faça de sua vida uma obra de arte.
É a partir dessa noção de arte que pretendo abordar alguns aspectos da obra do artista alemão Joseph Beuys. Apesar de sua vasta produção em escultura, aquarela, pintura e desenho, é a produção imaterial beuysiana – ações performáticas, suas aulas e sua biografia – que chama atenção diante do que Bourriaud denominou existência unificada.
Em 1964, no dia da comemoração aos 20 anos do fracasso do golpe de Stauffenberg contra Hitler, Beuys expôs sua autobiografia fictícia. Explicou, entre outras coisas, que a presença de gordura e feltro em quase todos os seus trabalhos, originou-se em seu encontro com uma população tribal da União Soviética, a qual teria salvado sua vida ao enrolá-lo nesses materiais após a queda de seu avião, metralhado durante a Segunda Guerra Mundial. Com este ato Beuys integra seu próprio personagem à sua problemática artística, recriando sua própria existência. Sua biografia, que remonta à cultura européia dos santos, onde esculturas invisíveis são erigida (2), não importa ser tida como verdadeira e nem como falsa, mas como uma lenda, no sentido da palavra em latim – aquilo que deve ser lido e dito, aquilo que é narrado. Recorrente e difusa, variável e não verificável, a lenda tem o status de verdade, ou assume seu lugar. No entanto, a lenda de Joseph Beuys deve ser tomada não como constituinte de uma verdade, mas pelo efeito de verdade que esta agrega a toda a análise de sua obra artística. É imprescindível à compreensão da produção beusyana que se recorra à lenda, da mesma forma como a lenda é constantemente alimentada e reafirmada pela obra.
O próprio Beuys, ao refletir sobre sua produção, afirma que "na verdade, esse choque ao final da guerra é minha primeira experiência, a experiência fundamental, a qual, de fato, foi o que me levou a começar a produzir arte, ou seja, a me orientar em direção a um começo radicalmente novo (3)"(minha tradução). Beuys está constantemente a alimentar sua obra com a lenda, retornando incessantemente ao início do ciclo que o criou como mito. Desta forma, Beuys se re-insere na própria obra, ao contrário do artista que se retira quando o trabalho está pronto. Ao aparecer em público sempre vestido em seu colete de aviador e chapéu de feltro, atributos simbólicos que o relacionam a sua biografia conturbada, Beuys, assim como um xamã, identifica sua existência a uma qualidade mítica que deve ser louvada – não por ser verdadeira, mas porque a própria sociedade admitiu sua proclamação, sem questionar se o que ele descreve foi realmente vivenciado.
Ao esculpir sua própria identidade, Beuys nos apresenta a máxima da arte moderna e seu conceito alargado de arte, onde a fala é pintura, e o pensamento, ação. Ao apresentar-se contra "o silêncio de Marcel Duchamp" (4), Beuys utiliza-se do princípio que ele mesmo denominou de "conferência permanente", no qual afirma o espaço ilimitado de seu campo de ação que pressupõe a presença do artista e seu poder de enunciação de si e de sua arte. Cada declaração sua, cada frase explicativa de sua obra é necessariamente parte da obra. Portanto, ele é responsável por sua fala, assim como um pintor é responsável por sua pintura. Por exemplo, a escultura para Beuys está intrinsecamente ligada à voz do artista, à sua presença, à sua lenda, à sua vida. Sua arte opõe-se a tudo o que é imutável, à medida em que constrói um espaço em constante transformação e perecimento. A sua escolha por trabalhar com materiais como gordura, animais mortos, mel, sangue, feltro, caracteriza essa necessidade de se situar em um processo de transformação. Longe de apresentar esses materiais em si mesmos, como obras de arte acabadas, Beuys utiliza-os como um ponto de partida, um lugar de onde reflexões possam aflorar.
Beuys utilizou a gordura pela primeira vez em uma performance realizada no "Festival of New Art", na Universidade de Aachen, na Alemanha, quando foi diretamente atacado por estudantes de direita. Enquanto ele derretia duas barras de gordura em pratos quentes, ouvia-se como trilha sonora o infame discurso do político alemão Joseph Goebbles, que veementemente convocava toda a população para entrar em estado de "guerra total". O confronto direto causado por essa experiência – Beuys foi agredido fisicamente, tendo o rosto atingido e ensangüentado, segurando um crucifixo contra os agressores – nos dá um quadro do que a obra de Beuys representa para ele mesmo: um desejo de "provocar as energias das pessoas e conduzi-las a uma discussão geral sobre os problemas presentes" , novamente retornando a um conceito alargado de arte, que envolve sua atuação cotidiana perante a sociedade, num contínuo processo de criação de si e de sua arte.
Xamanismo, presença física, construção de uma lenda, construção de si: a dimensão da obra de Beuys vai além da materialidade de sua produção, vai além de sua escultura social, sendo a própria vida do artista um dispositivo crucial, insubstituível. Na concepção beusyana, assim como na modernidade artística apontada por Bourriaud, a arte não está separada da vida, mas essa alarga sua prerrogativa natural, sendo o artista em si um material no qual esculpir, capaz de transformar estados mentais como nenhum outro pode fazer.
Christina Fornaciari é mestra em Performance pela Queen Mary's University of London e graduada em Teatro pelo Teatro Universitário da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais.
Notas:
1 BOURRIAUD, Nicolas. Formes de Vie. Paris, Editións Denoël, 1999.
2 BURCKHARDT, Jacqueline (org.), Una Discussione, Zurique, 1986. p 136.
3 HAL, Foster. Art Since 1990, (Vol. 2). Nova York: Thames and Hudson Inc., 2004. Pág. 481.
4 Beuys se revela contrário ao conceito de "anti-arte"em sua ação "O silêncio de Marcel Duchamp é superestimado", de 11 de novembro de 1964.
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